É triste ter que admitir, mas uma hora eu precisaria acordar…
É só silêncio, a tevê desligada, as louças na pia, garrafas vazias. As toalhas, de tão velhas, rasgam quando as ponho pra secar. O chão do banheiro, lodo, poças d’água. Roupas sujas se acumulam, traças, camisas amarrotadas lembrando bons verões passados.
Quantos anos se passaram desde então?
Eu esperava na varanda, abria o portão, olhava pra rua. Passava horas repetindo esse trajeto. Entrava em casa, encarava o telefone, ligava a tevê, cochilava, acordava, e repetia tudo outra vez.
Havia dias em que saia cedo, tomava um ônibus qualquer. Andava quilômetros e quilômetros calado, sem falar com ninguém, sem olhar para os lados – mudo e estático até anoitecer. E então voltava para casa na esperança de uma porta aberta, uma lâmpada acesa, e a surpresa de lhe cruzar o corredor, do banheiro para o quarto, ou algo assim.
Por muito tempo eu fui seu homem, fui seu sonho. Fui tudo e todos, de todas as maneiras, pra ser sempre aquele que você quis ter por perto. Não sei contar em quantos me transformei, não sei contar quantos rostos usei ou quantas vezes cedi, quantas vezes admiti estar errado quando era minha a razão, só pra ver seus lábios arquearem, se moverem, ouvir sua voz dizendo que me amava e ter seus braços em torno do meu corpo.
Por muito tempo esperei o seu retorno. Bobagem! Não adiantou olhar a rua. O telefone não tocou. Nunca houve porta aberta ou lâmpadas acesas. Só o silêncio. Só a solidão. A sufocante solidão, seu relógio de pulso, todas as cartas, perfumes, vestidos… e suas fotos espalhadas pela casa.
Todos dizem que preciso reagir, que preciso me cuidar, voltar a fazer a barba. Insistem que sim, ainda preciso cortar e pentear meus parcos fios de cabelos, embranquecidos sem que eu me desse conta. Dizem que preciso de amigos, preciso dormir, preciso sorrir, preciso de novos perfumes. Falam para cuidar da pressão, sair com outras pessoas, me alimentar melhor, ir devagar com o vinho. Todos falam. Todos dizem coisas demais. E tudo o que eu precisava era ouvir que, quando eu menos esperar, vou chegar em casa e lhe encontrar sentada no sofá da sala, de frente para a porta, sorrindo para mim.
Deixei de acreditar, e é uma pena. Hoje enfim entendo que somos só eu e essa maldita casa vazia.
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ps.: parte 2 de 3 de Réquiem. As outras partes estão aqui (Réquiem, abril de 2005) e aqui (No frio das ruas, do mês passado).